domingo, 20 de março de 2016

Dizer tudo



"O que não se diz apodrece em nós", diz o monsenhor Bernardo, incentivando Sabino a contar tudo: "deve-se dizer tudo, exatamente tudo".

É o que os personagens fazem, o tempo todo, em O casamento, de Nelson Rodrigues. São uns tagarelas. O texto é ágil e dificilmente o narrador extrapola um parágrafo, porque logo vem um travessão, um desabamento de falas dos personagens em algo que se pode chamar de diálogo.

Sabino tem a sensação de que vai estourar uma veia da fronte.
Crispada, ela pergunta:
— O senhor gostou?
— Me chama de você.
— Eu respeito. O senhor está em cima de mim, mas eu respeito o senhor.
— Noêmia! Sou eu que estou mandando! Me chama de você!
Fecha os olhos:
— Você gostou?
Não responde logo. Começa:
— Isso é que você quer saber? Já sei. Você acha. Não é isso? Acha que eu gostei. Mas olha. Se está pensando que eu, eu, entende?
Parece que é outro que fala, não ele, outro, outro.
Soluça:
— Gostei, gostei!

A gente sabendo que o autor é quem é, logo pensa: teatro, o drama rodriguiano, em que as personagens são incrivelmente reais e datadas, como se tivessem pegado uma máquina do tempo direto do Rio de Janeiro dos anos 60 pra nossa cama de agora. Mas o narrador, sem ser personagem, também é tagarela, se atabalhoa nas palavras, gagueja e repete, confunde tempos e pessoas verbais. Todo mundo está dizendo "exatamente tudo", juntando num mesmo parágrafo as ideias mais disparatadas, confissões falsas, a imagem de si que deseja exibir para as outras pessoas e a outra, inadvertida, da qual quer fugir a todo custo.


"Nachtessen in Dresden (Remix)", de Georg Baselitz (2006)


Como não é possível dizer tudo, exatamente tudo, estamos apodrecidos de antemão. Daí a sacanagem ser a característica comum aos personagens. O mesmo monsenhor vaticina: "Se cada um conhecesse a intimidade sexual dos outros, ninguém falaria com ninguém". A gente, que conhece a intimidade sexual de todos os personagens, tem o privilégio de não ter que conversar com eles e, mais do que isso, de ver eles conversando entre si.

Isso é um procedimento-padrão em romances e no drama burguês: o privilégio do espectador. O romance de Nelson Rodrigues vai um pouco mais além, mostrando só a face porca e incoerente de todo mundo, a podridão como traço da espécie, e aí o nosso privilégio se entorta. Como nos livros do Marquês de Sade, lemos e sentimos uma sucessão de nojo, tesão e identificação, em princípio excludentes entre si, mas que vão se apresentando com tal velocidade que acabam confundidos.

Dá vontade de nos confessarmos também para o padre, que vai nos ouvir com o sigilo do ofício e com uma saliva imperativa se acumulando na boca, ordenando que contemos mais. "É pouco. Você tem que ir até o fim." Mas o tudo, meu deus, não tem fim!