domingo, 8 de maio de 2016

Escrever penínsulas

Em Como curar um fanático, Amós Oz fala de política usando, muitas vezes, metáforas, como talvez seja próprio de um escritor metido em política, ou talvez seja uma característica de qualquer fala sobre política.

É óbvio que algumas dessas metáforas sejam de natureza biológica. Em Doença como metáfora, Susan Sontag chama a nossa atenção para essa mania e suas consequências, analisando especificamente o ônus que expressões como "câncer da sociedade" acarreta a pessoas que têm câncer - e que acabam tendo de lidar não apenas com uma doença, mas com o próprio símbolo do Mal instaurado em seus corpos. Sontag diz que a gente deveria ter cuidado ao falar esse tipo de coisa.

Amós Oz parece ter algum cuidado. Ele usa, por exemplo, a metáfora manjada do vírus para se referir ao modo como o fanatismo pode ser contagiante. Na verdade, o fanatismo é muito pior, "é fácil de pegar, é mais contagioso do que qualquer vírus. Pode-se facilmente contrair fanatismo mesmo quando se está tentando vencê-lo ou combatê-lo". O método de reprodução viral é uma metáfora, mas Oz não se refere a nenhuma doença específica, e é isso que estou identificando como um cuidado com as palavras e com as pessoas portadoras delas.

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Talvez seja um cuidado involuntário. Porque, afinal, mais do que um vírus, o fanatismo é um gene. Um "gene mau", "uma parte onipresente da natureza humana", diz o escritor israelense. (Hilda Hilst gostava de escrever que o ser humano tem "o verme no cerne".)

Não existe cura para aquilo que não é episódico, mas essencial. A etimologia de "gene" remete ao que do grego poderíamos traduzir como "gerar, produzir, dar origem", e então a maldade fanática estaria no nosso começo. Seria anterior a nós, parte nossa imprescindível, gravada no nosso Livro da Vida assim como a cor dos nossos olhos e a nossa propensão a determinado tipo de câncer.

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A genética é a ciência que olha o mistério com lupa, buscando extrair do nosso silêncio todos os sons existentes. Amós Oz faz o contrário, porque a literatura, mesmo quando em formato de análise política, usa outra lupa, uma que busca extrair o silêncio dos sons. Na genética de Oz, esse gene humano, que pode ser um vírus, importa por ser uma prática, e não por ser uma característica da qual ninguém escapa. Deixemos a fatalidade ao fatalismo que lhe é próprio e vamos nos concentrar nas coisas com as quais podemos lidar.

A metáfora da cura, então, anunciada nos títulos (porque os títulos precisam ser estridentes), é amenizada ao longo dos ensaios com a apresentação de remédios que não são senão curas parciais. A imaginação e o senso de humor são algumas das pílulas que Oz apresenta como possíveis soluções para enfrentar pessoas tomadas pelo fanatismo e para prevenir a expansão desse gene ruim que existe em "nós", os não fanáticos.

Não vou parafrasear ou copiar a descrição que Oz faz dessas pílulas - o texto dele é tão enxuto e simples que é melhor ir direto à fonte. Mas uma das consequências que o uso desses remédios pode acarretar, prescreve ele, é a de dar às pessoas a "capacidade de existir em situações em aberto, até mesmo aprender a desfrutar de situações em aberto".

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Cercada por toda essa medicalidade, uma metáfora se estende sob as teses de Oz, sustentando-as e ultrapassando-as. Ele retoma a citação clichê de John Donne, de que nenhum homem é uma ilha, para dizer que todo ser humano é uma península, "metade ligada ao continente, metade voltada para o mar; metade ligada à família e amigos e cultura e tradições e país e nação e sexo e língua e muitos outros laços. E a outra metade quer ser deixada só e ficar voltada para o oceano. [...] A condição de península é a própria condição humana. É isso que somos e é o que merecemos continuar sendo. Assim, em certo sentido, em toda casa, em toda família, em toda conexão humana, temos de fato um relacionamento entre um número de penínsulas, e é melhor que nos lembremos disso antes de tentar moldar um ao outro e modificar um ao outro e fazer o próximo ficar do nosso jeito quando ele ou ela, na verdade, estão precisando se voltar ao oceano por um momento".

No estilo da escrita, Oz exemplifica (ou realiza) suas propostas políticas (direcionadas, basicamente, a resolver o impasse entre Israel e Palestina, apesar de aqui e ali se referirem também a outros episódios). Com metáforas esburacadas e digressões narrativas, ele cria penínsulas nas teses. Assim, embora as propostas e os posicionamentos sejam firmes e objetivos, o texto é sinuoso - é um texto em aberto.