sábado, 22 de setembro de 2012

A política da arte burguesa



Em uma conferência para escritores em Buenos Aires, em 1936, Henri Michaux diz que a poesia não deve se submeter a nenhuma ordem ideológica, a nenhuma intenção doutrinária. "A boa poesia", ele disse, "é rara em regime de patronato, tal como nas salas de reunião política".

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Leio esse texto, concordo com ele, e entra pela minha janela o rap dos Racionais sobre Carlos Marighella. Ora, não se pode negar o próprio corpo, as roupas que o vestem. Mas também não se pode negar o que entra pela janela, vindo da rua.

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Marighella, que também foi poeta, mas nunca li seus poemas, foi um homem que se dedicou à luta armada revolucionária e que por isso foi assassinado pelo Estado. O rap dos Racionais usa um discurso de Marighella proferido no rádio durante a ditadura militar, em que o guerrilheiro chama a população às armas: "Todos nós devemos nos preparar para combater (...) Cada um deve aprender a lutar por sua defesa pessoal. À medida que se for organizando a luta revolucionária, a luta armada, a luta de guerrilha, que já venha com sua arma".



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É um fosso que há entre a poesia burguesa de Michaux e o canto armado dos Racionais.

Durante as guerras de independência de muitos países africanos, nos anos 1950-70, a poesia servia à luta assim como os fuzis. Poesia com armas chama-se um livro do poeta angolano Costa Andrade, em que se lê:

O guerrilheiro também vive
um tempo de poesia
como a vida de uma bala
na emboscada dos murmúrios
apenas respirados.

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Michaux propõe aos escritores que o ouvem que não se esforcem por imprimir em seus textos os problemas sociais.

Em poesia, vale mais sentir um estremecimento a propósito de uma gota de água que cai em terra e comunicar esse estremecimento, do que expor o melhor programa de entreajuda social.
Essa gota de água provocará no leitor mais espiritualidade do que os maiores estímulos à elevação de sentimentos e mais humanidade do que todas as estrofes humanitárias.

Talvez Michaux estivesse falando diretamente contra a diretriz stalinista do 1º Congresso dos Escritores Soviéticos, de 1934, que impunha o Realismo Socialista como único modelo literário válido, em detrimento de todas as outras experiências estéticas, inclusive as da vanguarda revolucionária russa.

Lida hoje, essa fala do poeta belga soma-se a tantas outras que criaram uma escola (por assim dizer) literária no mundo burguês, para a qual a arte não deve ter nenhuma amarra com a realidade. A arte é a realidade, alguns dizem. Uma realidade paralela, nova, que cria a realidade real do mundo do pão.

Se o capitalismo transformou o poema em mercadoria de troca, a poesia capitalista se autodeclara continuamente "inútil", um inutensílio que não tem serventia alguma no mundo das mercadorias. É uma negação que reafirma seu próprio lugar no sistema, o que acaba por confirmar que o sistema é uma rede complexa de afirmação mútua, em que as peças se apoiam umas nas outras e, quando ruem, se ruem, apenas traçam novos muros num desenho mais amplo que é (será?), em sua estrutura geral, inabalável.

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São duas poéticas diferentes, e as poéticas são feitas por pessoas, do que concluo que são duas pessoas muito diferentes. Os Racionais MCs refazem o chamamento de Marighella, afirmando que a opressão do Estado autoritário (que, para o povo preto e pobre, não começou em 1964 nem terminou em 1989) deve ser combatida com armas e que os ensinamentos do guerrilheiro são atuais e úteis.

Trata-se, também, de duas utilidades diferentes: uma, a utilidade prática de manual (Marighella escreveu o Minimanual do guerrilheiro urbano, de 1969), ensinamento factual que a luta exige e que a poesia guerreira exerce; outra, a utilidade dos bens de consumo que a poesia burguesa nega e exerce simultaneamente, tanto em suas palavras como em sua forma de circulação.




As afirmações de Michaux, portanto, seguem atuais. Se burguesa, a única maneira que a arte tem de influir politicamente é comunicar um estremecimento que provoque a espiritualidade do leitor. Clarice Lispector disse que toda arte é revolucionária. Se não é revolucionária, não interessa.

Clarice não estava pensando, imagino, na revolução como categoria política (burguesa, inclusive) difundida desde o século 18. Sua afirmação tem muito mais a ver com o que dessa categoria política pode ser aproveitado em tempos de estagnação do sistema social.

Maiakóvski, este sim levado por e provocando um momento de ruptura sistêmica e guerra popular, disse que não há arte revolucionária sem forma revolucionária. Nesse sentido, Michaux segue com razão. Sem um fuzil, a gota d'água do poema não entornará nenhum balde, nenhum tanque. Cairá por terra e poderá, assim, se bem-sucedida, provocar um terremoto. Um grande terremoto - no coração do espírito do leitor burguês.

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