segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Meu caro amigo



Não lembro qual foi o primeiro livro dele que eu li. Aos 14 anos, com a carteirinha da circulante adulto fresca nas mãos, eu passava horas cheirando os corredores da biblioteca municipal de Jundiaí à espreita. De alguma coisa surpreendente, desconhecida. De alguma porta. Mas, sobretudo, de alguma coisa amiga, já que era barra ser adolescente na província, numa vida - como era possível? - sem nem ideia de internet.

Talvez tenha sido um dos últimos momentos do Brasil de classe média em que as coisas não se deram pela mediação dos modems. Muito por acaso, buscando em fichas empoeiradas de catálogo palavras-chaves como "homossexualismo" é que eu devo ter chegado a uma lista de livros proibidos, mas ali dando-se como frutas, que eu ia ticando um a um na minha lista improvisada em fim de caderno, na busca de um amigo. E, de orelha em orelha, de coleção em coleção, acabei mesmo encontrando. Um dos meus melhores.

*

Tudo nele me parecia vivo e próximo. Pela primeira vez, ler não se dava pela barreira da língua traduzida, ou de um século 20 tão sólido e tão distante daquele fim de mundo em que eu vivia, final de anos 90. A alegria foi tão grande que eu, sempre muito preguiçoso, só não devorei mais rápido tudo o que havia na biblioteca por medo da hora em que acabasse - e eu ficasse sem, outra vez.

Foi numa dessas leituras repetidas, enrolonas, que adiavam o fim, que me ocorreu: ele devia estar vivo! Ele devia estar escrevendo! O mundo tomou um tamanho sensato. Eu escreveria para ele. Como? Daria um jeito. Olhava as fotos com calma, perscrutando um endereço que se revelasse nas sobrancelhas grossas e desarrumadas, nos óculos pousados sobre o narigão da cara de bobo. E se ele me dissesse: "Não."? Eu escreveria, com certeza. Sem saber o que dizer. Mas eu diria: obrigado. Foi um prazer te conhecer.

Não sei como, tampouco, talvez numa matéria do jornal da capital que meu pai assinou aquele ano. Ou de que jeito, então? Caio tinha morrido, já fazia dois anos. E morrera um ano antes de que eu o conhecesse. Eu tentava contar a minha tristeza pros meus colegas de 8ª série, enquanto os fazia ler parágrafos, contos, as fotos do Caio F. Como contar? Sei lá se chorei. Sei que nunca mais parei de ler.

*

Acho que é a ideia mais recorrente que faço sobre a literatura. Cristã demais, pode ser. A de que a literatura salva vidas.

A qualquer objeção, minha resposta automática sempre é: salvou a minha, pelo menos. Me vejo hoje e me pergunto: salvou mesmo, é? Já não sei. Mas, aos 14 anos, sem forças para ter toda a vontade que eu tinha, os livros do Caio me deram o adubo necessário. Para quê? O tempo dirá. Eu ainda não acabei.

Há coisa de um mês, ele veio novamente ao meu encontro. Talvez sejam encontros marcados dos quais ninguém me avisou, a bibliomancia teimosa, ou um anjo bom e sujo me lembrando que todos os anjos são bons e sujos. (Ele acreditava em anjos.)

Uma colega de trabalho, sem que eu pedisse especialmente, me emprestou o volume de cartas do Caio, organizado pelo Italo Moriconi e publicado pela Aeroplano em 2002. Forçado pela cortesia e pelo acaso a aceitar a dádiva de empréstimo, comecei com um pouco de má vontade, de pressa a ler o livro que pensava em devolver logo, com um agradecimento tão cortês e casual quanto.

Aqui cabe um parêntese. Caio não é tão bem visto, não? Na faculdade de Letras, muita gente torcia o nariz quando eu falava dele. Muita gente, também, dando razão à primeira, endeusava o escritor-apaixonado-egocêntrico-atormentado-com-final-trágico e hoje deve estar criando imagens de facebook para espalhar a boa palavra. Preguiça em ambos os casos.

De todo modo, essas outras maneiras de vê-lo, aliadas à minha própria necessidade de cortar os cordões do que já foi, fizeram com que eu relegasse o Caio, muitas vezes, a um ranço jundiaiense que não perco as esperanças de adquirir. Outras leituras, também, e igualmente a minha própria incursão no meio-dia do lado escuro da vida, me fizeram bodear um pouco do Caio, de boa parte dos seus textos que, convenhamos, não são assim tão dignos do facebook.



A organização do Moriconi é de uma delicadeza e de uma generosidade muito grandes. O livro é dividido em duas partes. A primeira reúne cartas de 1980 até 1996, período em que Caio e eu vivemos juntos, embora separados pelo tempo e pelo espaço, e que termina com a morte lúcida e dolorosa do escritor. (Em 1997, também, a indústria farmacêutica anunciou um coquetel de remédios que põe fim, quando acessível, ao martírio da aids como uma morte em vida.) A segunda parte do livro compreende um período em que eu e Caio ainda não nos conhecíamos, e que vai de 1965 até 1979, quando ele tinha a idade que eu tenho hoje, aproximadamente.

A morte do meu amigo, portanto, fica no meio. E sua vida continua, depois dela, voltando ao início e me alcançando, em 2012, para termos uma nova idade em comum. Sou muito grato ao organizador do livro por ter arranjado (será ele também um anjo sujo e bom?) esse nosso encontro mais uma vez, em momento novamente tão oportuno, em que nossas vidas coincidem numa armadilha em que, de novo, a solidão caiu feito patinho. Quack.

Olhando meus livros, que envelhecem na estante, e a tela deste computador barulhento, que emite uma luz irritantemente pura, não me sinto assim tão diferente do adolescente que eu fui, embora o tempo não me dê mais tempo praquele tanto de inocência.

Quanto à literatura, foi com o mesmo Caio que aprendi que mais vale um cachorro vivo. As fotos da minha cachorra morta, da minha avó morta e do meu escritor morto me olham, rodeando minha escrivaninha. Na madrugada de um dia difícil, estou transplantado, adubado, tomo fôlego pra seguir crescendo. Acho que o que salva mesmo são os amigos.


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