quinta-feira, 27 de setembro de 2012

As cores do azul



O cenário é uma cidade à beira-mar, mas também uma cadeia. O mar ~ seu horizonte sem vírgulas ~ quase não aparece, vira assunto apenas quando lhe derramam petróleo, venenos e os peixes todos morrem, seguidos dos pescadores pobres que não têm isca pra mais nada. As paredes de conventos, casarões, igrejas – prisões – cercam os nossos sonhos, crescem altas e derrubam-se sobre nós.

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A vastidão do azul ofuscada por paredes é um desses oxímoros simbólicos, éticos que tecem a história. Assim também é o machismo onipresente, perpetrado por personagens todas mulheres – principalmente pela dura matriarca dos Carvalhais Medeiros, a velha Menininha.

É com oxímoros que Heloneida Studart constrói seu romance e também uma maquete do Brasil. Penso nos sem-terra que vivem aqui, quinto maior território do mundo. Esses conceitos localizados em extremos opostos, mas que, ao se materializarem em pessoas, situações, personagens, coabitam e não raro se amparam uns nos outros, viram realidade. A nossa.

As mulheres são a maior parte da população do país (do planeta também). E sofrem as mais bárbaras violências, motivadas pelo princípio de superioridade do homem, que lhes é numericamente inferior. Como explicar?

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A narradora ~ Marina ~ é uma menina de 20 anos que despreza essa ordem social. Asmática, mirrada, escondida, vê-se eleita, sem vontade, sucessora de Dona Menininha em suas posses, seu poder de vida e morte. "Só você é que tem pulso, sustância e pudor nessa casa", a velha lhe diz, admirando suas próprias qualidades na neta. Intransigência, resignação, desprezo. Aquilo que, na avó carola, coronela, é o pilar de sustentação do arcaico, na menina seria a força de destruição dessa velha ordem.

Marina é apaixonada pelo primo mais velho, o bastardo João. Um rapaz que foi preso por pichar em um muro uma estranha frase, que o liga a uma comunidade internacional de subversivos que nada mais fazem do que reafirmar continuamente essa frase. O pardal é um pássaro azul. É o título do livro. Heloneida também faz parte dessa comunidade internacional, acuada nas frestas de um continente que vive, nas palavras do romance, "o pesadelo unânime".

Embora, nas memórias de Marina, João esteja livre o tempo todo, correndo pelas dunas, catando siris, sorrindo uma utopia socialista – embora essa imagem de João esteja espalhada pelo livro, é com a figura do rapaz imóvel, abatido, com marcas de tortura, que Marina ~ e nós ~ se encontra frontalmente. É esse João que nos olha por detrás das grades, definhando numa prisão sem acusação nem processo, sem juízo, da qual nem mesmo a herdeira dos poderosos oligarcas Carvalhais Medeiros pode livrá-lo.

Espremida entre as paredes, o que impede Marina de amar João – e florescer, assim, o que seria a síntese redentora do livro – é um novo avesso: João é homossexual. Heloneida cria um mundo em que nada flui e nada converge, mas onde os elementos discordantes não podem se negar, pois a realidade – mesmo a do amor – é invariável, não oferece alternativas e não permite concessões.

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Nesse mundo de pedra e tensão, uma união bruta ocorre em lugar da síntese harmônica. O encontro carnal entre Marina e João, a transferência de fato do poder de Menininha para Marina, a volta dos peixes ao mar poluído, nada disso se dá por consenso manso. No mundo das prisões arbitrárias, das mulheres agarradas pelos cabelos e enterradas em conventos, da tortura, nenhum desfecho pode ser bom.

Mas ~ a liberdade ~ Não quero contar o final do livro, acho falta de educação. Quero dizer que Heloneida Studart não se contenta em dar uma resposta fácil, seja ela de condenação ou de redenção. O pardal é um pássaro azul.

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Foi por acaso que encontrei esse livro, na barraquinha de livros da feira livre aqui do lado de casa. Não conhecia Heloneida Studart, que agora conheço um pouco, graças a este perfil publicado na revista Estudos feministas, do qual reproduzo os dois trechos abaixo, memórias de Heloneida que  se tornam também minhas. O pardal é um pássaro azul foi publicado em 1975, é o primeiro da Trilogia da Tortura escrita por ela e um dos muitos livros de oposição à ditadura que Heloneida escreveu.

Eu tinha 13 anos, em Fortaleza, quando ouvi gritos de pavor. Vinha da vizinhança, da casa de Bete, mocinha linda, que usava tranças. Levei apenas uma hora para saber o motivo. Bete fora acusada de não ser mais virgem e os irmãos a subjugavam em cima de sua estreita cama de solteira, para que o médico da família lhe enfiasse a mão enluvada entre as pernas e decretasse se tinha ou não o selo da honra. Como o lacre continuava lá, os pais respiraram, mas a Bete nunca mais foi à janela, nunca mais dançou nos bailes e acabou fugindo para o Piauí, ninguém sabe como, nem com quem.  
Eu tinha apenas 14 anos, quando Maria Lúcia tentou escapar, saltando o muro alto do quintal da sua casa para se encontrar com o namorado. Agarrada pelos cabelos e dominada, não conseguiu passar no exame ginecológico. O laudo médico registrou vestígios himenais dilacerados, e os pais internaram a pecadora no reformatório Bom Pastor, para se esquecer do mundo. Realmente esqueceu, morrendo tuberculosa.

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