sábado, 24 de novembro de 2012

Mishima ou A visão do corpo



Acho que eu sempre entrevi ou criei, entre as linhas de romance e versos, a silhueta da vida de quem os escreveu. Durante a faculdade de Letras, mesmo depois, essa intimidade erótica, meio obscena, com o autor ou autora foi às vezes suplantada por algo que agora me parece bobagem: que o texto é feito de palavras e nada mais.

Mas também não falo das fofocas e das pretensões de identificação personalística, preciosística, essa autoestima exagerada que nos abate a ponto de rejeitarmos qualquer silêncio.

Comprei e estou terminando de ler Mishima ou A visão do vazio, de Marguerite Yourcenar, que é uma espécie de biografia do escritor japonês, sussurrada nas tramas dos livros dele. Marguerite evita identificar vida a obra, mas não foge das confluências inevitáveis entre as duas; que, se não se explicam, tampouco se excluem.

Mishima é um dos meus escritores preferidos, embora tenha lido quase nada dele. O marinheiro que perdeu as graças do mar tinha a onda de Hokusai engolindo o monte Fuji na capa; uma cena de menino que espia o sexo da mãe e do namorado dela, que, mandada por e-mail, me deu bons amigos e um namorado próprio; um desfecho aterrorizante, em que a inocência nasce da crueldade. Morte em pleno verão é um volume de contos que não cheguei a terminar, porque dei de presente para uma amiga.

Talvez possa agrupar xs escritorxs de que gosto em: amigos e amigas, e/ou aquelxs com quem tenho contatos eróticos. Mishima está no segundo grupo.

A intimidade da pele sem roupa nas palavras não é a mesma da convivência prolongada e cotidiana, são bem diferentes, mas é tão intimidade quanto. Em uma, não se descobrem os sabores da outra, e vice-versa, há exceções.

Nesse livro de Yourcenar, talvez a relação da autora com Mishima não seja de nenhuma dessas duas ordens. Antes, ela parece observá-lo como um colega de ofício, desses com quem não temos nenhuma intimidade, mas com quem o convívio cotidiano faz nascer um afeto distante e um respeito desinteressado.

Isso faz com que eu aprecie o livro de outra maneira, diferente das três relatadas anteriormente: vejo Yourcenar como uma pessoa dentro de um trem, numa viagem nem longa nem breve, quase confortável, cujo corpo é agradável e indiferente de observar.

Mishima, no entanto, outra vez respira próximo de mim. Seu bafo me encontra, o olhar duro de imagens inequívocas, a fuga após o coito.

A leitura também é memória do corpo.


Um comentário:

  1. Impecável, como sempre.

    Aqui é o Pilo, não sei se você se lembra de mim.

    Saudades do teu corpo nu.(AQUELES..haha)

    Abraço,

    João Pilo
    (pilopilao@yahoo.com.br)

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